quinta-feira, 17 de maio de 2012

Carta do Professor Carlos Ramalhete a Dom Diamantino, bispo da Diocese da Campanha.

O amigo Professor Carlos Ramalhete, fundador do apostolado A Hora de São Jerônimo, escreveu uma carta a Dom Diamantino Prata de Carvalho, manifestando sua preocupação com o futuro do patrimônio litúrgico, histórico e devocional da Diocese da Campanha MG, perante a Comissão diocesana de Espaço litúrgico e Arte sacra. Infelizmente a carta nunca foi respondida. Preocupa-se o Professor com os rumos que podem tomar a restauração de nossa Catedral tendo em vista uma possível atuação de tal Comissão nos trabalhos.

Com a permissão do autor, trago a público a carta enviada em 2010. Vamos a ela:

________________

 Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Diamantino Prata de Carvalho, ofm, pela Graça de Deus Bispo da Igreja Particular da Campanha:

Antes de qualquer outra coisa, peço a permissão de Vossa Excelência Reverendíssima para me apresentar. Meu nome é Carlos Ramalhete, e moro há menos de um ano na minha propriedade, chamada Quinta São Tomás, na paróquia de Carmo de Minas. Meu telefone é (35) 91**-**** e meu email é profcarlos@hsjonline.com. Tive a honra de conhecê-lo – ainda que não tenhamos sido apresentados – por ocasião do 1º Encontro diocesano de Arquitetura e Espaço celebrativo, em Três Corações. Sou o barbudinho que estava sentado na primeira fila, cuja careca Vossa Excelência Reverendíssima afagou de um tapinha paternal. Meu filho Francisco Bernardo igualmente teve a
honra de conhecê-lo quando, vestido como São Francisco, participava de atividade promovida pelo Colégio das irmãzinhas, em São Lourenço, onde estuda.

[...]

Venho assim humildemente, na qualidade de ovelha do rebanho que o bom Senhor quis em Sua infinita misericórdia confiar ao firme e santo pastoreio de Vossa Excelência Reverendíssima, entregar pressurosamente minhas impressões e meus receios, decorrentes do que tive ocasião de vivenciar durante o Encontro em que nos conhecemos. A professora, Irmã Laíde Sonda, pddm, é inegavelmente dotada de profunda erudição no tocante à história da liturgia e no que diz respeito à bela arte da arquitetura, além de ser pessoa de sumo bom gosto estético. Suas aulas ofereceram aos que delas participaram um rápido, porém profundo e bem apresentado, panorama do desenvolvimento e do significado de diversos elementos cruciais do espaço da celebração eucarística. Foi para mim de grande valia ter feito o curso, a que fui convidado inesperadamente. Explico: um engenheiro de minha amizade, morador de Itamonte, foi convidado para o curso. Sabedor de meu interesse por teologia e provavelmente em busca de companhia, ainda que enfadonha, pediu autorização a seu pároco, que gentilmente aceitou inscrever-me por aquela paróquia. Mesmo paroquiano do Carmo de Minas, vi-me assim inscrito por Itamonte.

Não podendo perder a chance de mais aprender sobre a nossa santa Fé, aceitei de bom grado a gentileza e expliquei a quem perguntasse ser paroquiano do Carmo, apesar de inscrito por Itamonte. Tendo sido feita minha inscrição às vésperas do evento, não tive sequer oportunidade de consultar o bom Pe. Cruz, meu pároco. Qualquer inconveniência que eu possa ter causado é assim de minha completa responsabilidade, tendo o pároco de Itamonte feito uma gentileza a alguém de cuja devoção ele soube por um amigo e tendo o meu próprio pároco ignorado a situação por completo. Peço humildemente o perdão de Vossa Excelência Reverendíssima se houver agido erradamente.

Apresentada a situação, venho a Vossa Excelência Reverendíssima manifestar minha preocupação com alguns aspectos do que pude presenciar, e pedir humildemente, como filho a quem o pai não negaria o pão, o ouvido e o coração de meu pastor. Afligi-me pelo futuro do patrimônio histórico, litúrgico e devocional da Diocese da Campanha ao perceber que a orientação do curso – e que temo seja, por conseguinte, a da Comissão diocesana de Espaço litúrgico e Arte sacra, formada na mesma escola – foi em muitos aspectos alheia e mesmo contrária à tradição do nosso Rito Latino, vendo com maus olhos o inefável patrimônio devocional e litúrgico de cuja conservação a nossa geração tem agora o encargo e menosprezando as sábias orientações dos Sumos Pontífices, inclusive e especialmente o hoje gloriosamente reinante, Papa Bento XVI.

O que foi preconizado no curso e apresentado como alvo ideal a alcançar não é o que recebemos de nossos antecessores, ou mesmo um desenvolvimento orgânico do que deles recebemos, mas, ao contrário, uma árida construção intelectual que vê como peça de museu o que nos foi dado pela Igreja e procura substituir o rico patrimônio litúrgico e devocional de nosso Rito por uma improvisação feita a partir de estranhas releituras de ritos orientais, efetuadas sob a égide de uma espiritualidade oriunda de comunidades eclesiais que não têm comunhão plena com a Igreja. Reiteradamente, foi apresentada como modelo a seguir a comunidade de Bose, na Itália, em que convivem sacerdotes validamente ordenados e “pastores” protestantes, em que a communicatio in sacris, – que proíbem o Direito Canônico e a boa teologia ¬– é a regra, em que Nosso Senhor Jesus Cristo é dito “enviado de Deus”, não Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. 

Foi literalmente afirmado, para escândalo dos pequenos, que entre o preconizado pelo Sumo Pontífice e o feito em Bose, era preferível seguir a Bose. Passo, com a autorização de Vossa Excelência Reverendíssima e pedindo humildemente a paciência e a atenção de meu pastor, a explicitar os pontos em que, creio eu, seria aconselhável buscar, ainda que como complemento e continuação do lá exposto, uma formação mais conforme à vontade do Vigário de Cristo.

1. Reiteradamente, durante o curso, foi apresentada a liturgia do Primeiro Milênio como suposto modelo. Foi mesmo dito e repetido que a Igreja teria se desviado do reto caminho ao longo do Segundo Milênio, fazendo-se necessário voltar às origens. Ora, não apenas foi já o arqueologismo condenado pela Santa Sé, como racionalmente não é ele, nesta instância, mais que uma desculpa para a invenção de uma visão litúrgica desconectada do desenvolvido pelo Espírito Santo ao longo destes dois mil anos de caminhada da Igreja. Ao longo do Primeiro Milênio, desenvolveu-se tanto no Oriente quanto no Ocidente uma mais perfeita compreensão da diferença essencial entre o sacerdócio ordenado e o sacerdócio comum dos fiéis, assim como da profundidade e da riqueza do Mistério eucarístico. Nos ritos orientais, de que supostamente teria origem a visão litúrgica pregada durante o encontro – o que já seria de estranhar, tendo em vista ser nosso Rito o latino – houve e há ainda uma separação muito maior entre o espaço da liturgia eucarística e o da assembléia dos fiéis. Enquanto na Igreja latina desenvolveram-se organicamente o presbitério, a mesa de comunhão, a colocação do coro e outros elementos de separação do espaço mais sagrado, em saudável hierarquia que conduz à oração e à percepção do sagrado e do misterioso, nos Ritos orientais foi mantida a iconostase a impedir completamente a visão do altar dos Mistérios. Ora, esta separação e esta hierarquia foram o objeto da mais retumbante condenação no Encontro.

2. Do mesmo modo, nos Ritos orientais os ícones bidimensionais – e aí incluo os presentes na própria iconostase – são objeto direto de devoção dos fiéis. Na visão fabricada em laboratório que foi apresentada no Encontro, propõe-se uma ausência de quaisquer auxílios devocionais – tais como imagens de santos – do espaço litúrgico, em negação expressa do desejo dos Padres conciliares, que nos instruíram na Constituição Sacrosanctum Concilium que “[f]irme permaneça o costume de propor nas igrejas as sagradas imagens à veneração dos fiéis”. O objetivo seria a busca de uma suposta pureza eucarística que a Igreja teria perdido ao longo do Segundo milênio. As imagens de santos, foi-nos dito, podem estar presentes na forma nada devocional de pinturas de vaga inspiração estética oriental: decorativas e quiçá instrutivas, mas certamente não devocionais. Ora, tal visão afasta-se e nega tudo o que foi desenvolvido organicamente na Igreja não só no Segundo milênio, mas mesmo no primeiro, antes do Grande cisma do Oriente. Ícones bidimensionais são para os Orientais objeto de veneração devocional, não meramente itens instrutivos e/ou decorativos. Foi ainda no Século IX que Metódio I, Patriarca da Constantinopla ainda unida a Roma, escreveu “vendo a Vossa imagem imaculada, ó Cristo, e a Vossa Cruz traçada em relevo, eu me prostro e venero a Vossa verdadeira Carne”. Já tivemos iconoclastas na Igreja, justamente neste Primeiro milênio cuja ortodoxia litúrgica seria a suposta inspiração da teoria inspiradora da visão apresentada no Encontro. Foram estes, como Vossa Excelência Reverendíssima sabe muitíssimo melhor que eu, condenados em Nicéia por inspiração do Santo Espírito. Mas eis que voltam, e este novo iconoclasmo, por tardio, é ainda mais perigoso que o primeiro. Enquanto no primeiro a inspiração islâmica negava abertamente a ortodoxia da própria existência de ícones, quer o novo que eles sejam alijados do Templo, que não estejam presentes no Sacrifício.

Fazendo dos ícones bidimensionais – santos objetos de devoção dos nossos irmãos Orientais – itens de decoração ou meros símbolos não devocionais e retirando da igreja as imagens esculpidas, substituindo destarte a representação física e palpável da materialidade dos Santos por pinturas alheias à riquíssima tradição devocional e litúrgica do Ocidente, os novos iconoclastas efetuam ainda mais perigosa substituição: não mais quebram os ícones, sim os castram. As belíssimas estátuas de santos de nossa tradição ocidental são exiladas da Sala do Trono, sendo na melhor das hipóteses toleradas em capelinhas secundárias, em aberta contradição ao propugnado pelo Santo Padre Paulo VI, que ordenou na sua Carta apostólica Opera Artis que “as obras de arte do passado devem ser preservadas sempre e em toda parte, para que possam prestar seu nobre serviço ao culto divino e seu auxílio à participação ativa do povo na liturgia”.

Querem, contudo, os novos iconoclastas que as imagens daqueles que a Igreja elevou à honra do altar não possam jamais estar perto do altar mesmo; em seu lugar restam apenas esculturas quase abstratas, nas quais é impossível perceber a materialidade do santo de carne e osso que supostamente as inspira, ou imagens bidimensionais estilizadas ao exagero, com vaga inspiração nos ícones orientais, sendo-lhes contudo retirada a majestade e tudo o mais que possa inspirar à devoção. O leão torna-se poodle, a águia periquito engaiolado. Isto não vem da religião católica, sim dos ressaibos iconoclastas das comunidades eclesiais protestantes das quais são oriundos os inspiradores da triste visão de liturgia que nos foi apresentada no Encontro. O que seus antecessores não conseguiram fazer no Século XVI vem ser pregado dentro da Igreja no Terceiro milênio. Dentro, meu bom pastor a cujos pés me arrojo repleto de confiança, da Diocese cujo pastoreio o Bom Senhor houve por bem lhe confiar!

Desnudados de todo elemento devocional, estes espaços litúrgicos já perdem enorme parcela de seu ethos católico. Não está, contudo, concluído o trabalho de demolição; a própria orientação espacial do templo cristão, em que os membros da Igreja Militante, unidos, voltam-se para o Oriente, de onde vem a Luz, foi no Encontro tratada de errônea.

3. “Mover a Cruz do altar pra o lado para permitir uma visão direta do sacerdote é algo que percebo como um dos fenômenos mais absurdos das décadas recentes”, escreveu o Santo Padre Bento XVI. Pois foi isto o preconizado no Encontro. Mais ainda: a própria Cruz que deve estar presente junto do altar foi tratada como um estorvo legalista, algo indesejável mas que se deve tolerar por ser determinado em lei. Bom seria, para a visão lá pregada, que o altar fosse reduzido a um bloco de pedra nua, sem cruz, sem velas, sem nenhum dos riquíssimos elementos litúrgicos que o Santo Espírito houve por bem suscitar no desenvolvimento orgânico da liturgia. 

Foi dito em tom de desprezo que “alguns querem botar uma cruz aqui, encher de velas...”; observei então que quem o diz é o Santo Padre. Foi-me respondido que os luteranos, anglicanos e outros liturgistas presentes em Bose foram unânimes no contrário, e que eles tinham razão. Peço perdão, meu bom pastor, por ser o portador de tais notícias; não posso crer que Vossa Excelência Reverendíssima tenha sabido que seria pregada a superioridade de “liturgistas” que não crêem na Real Presença sobre o Sucessor de Pedro!
Ao redor deste altar-bloco, “olhando nos olhos uns dos outros” (sic), estariam os fiéis. Nas próprias celebrações eucarísticas ocorridas no Encontro – em que, aliás, foram empregados vasos litúrgicos de aparência bruta em cerâmica vitrificada, de forma contrária às expressas determinações da Igreja – foi assim montado um espaço litúrgico às avessas, testemunhando uma visão litúrgica tão díspar do desenvolvido na Igreja ao longo dos séculos e do preconizado pelo Santo Padre que nos foi dito que “a regra diz que a Cadeira, o Altar e o Ambão têm que ficar no presbitério; então é só chamar isso de presbitério, e pronto”. “Isso” é o espaço central, em que foram enfileirados o ambão – voltado para o altar como se não viesse do
altar o próprio sentido do ambão –, o próprio altar – que por força das circunstância era uma mesa de madeira – e as cadeiras dos sacerdotes concelebrantes, acólitos e leitores extraordinários. Em três fileiras, formando um par de parênteses ao comprido em torno destes três dos muitos elementos de que quis o Espírito Santo dotar em desenvolvimento orgânico o espaço litúrgico do nosso Rito, estavam as cadeiras escolares em que os fiéis nos sentamos.

Não trato neste texto do mobiliário e do local propriamente ditos, que forçosamente deixariam a desejar por terem sido celebradas as Missas no mesmo salão que Vossa Excelência Reverendíssima visitou; o grande número de pessoas presentes impediria o uso da capela do antigo Seminário, e por força das circunstâncias foi realmente necessário muito improvisar. Trato, contudo, do modelo de distribuição espacial
do que fez as vezes de mobiliário sacro, propositadamente reduzido a um suposto mínimo indispensável. As fotografias exibidas como exemplo de boa arquitetura sacra e de espaços condizentemente dispostos apresentavam o mesmo pauperismo proposital de elementos, com blocos de pedra nua fazendo as vezes de cadeira, altar e ambão, e todo o mais tendo sido retirado do ambiente.

Esta aridez do espaço do Santo Sacrifício nega radicalmente as espiritualidades e a tradição tanto do Ocidente quanto do Oriente. O entorno do altar, na tradição oriental, comporta obrigatoriamente dezenas de elementos de forte valor simbólico. Na nossa tradição ocidental, o espaço do Sacrifício, menos separado que o dos orientais pela ausência da iconostase e um pouco menos rico de objetos, ainda assim é carregado de elementos cujo profundo significado não poderia jamais ser desprezado, que dirá negado. Temos os degraus, que ascendem como para o Céu e delimitam um espaço à parte, que sabemos ser conducente à percepção do sagrado pela prática e pelos magistrais estudos de Mircéa Eliade, Frazer e outros; temos a orientação de toda a igreja que se volta para o Oriente, como parte da Igreja que caminha neste mundo ao encontro do Salvador que de lá nos vem como o sol da manhã; temos o sacrário, de que disse o Santo Padre que “uma igreja em que a luz eterna brilha diante do sacrário está sempre viva”; temos o Crucifixo a orientar os olhos dos fiéis e do sacerdote, unidos na celebração dos Mistérios; temos cores, objetos, cheiros, vestes, tudo dotado de camadas de significação tão profundas que se esgotaria a vida de um erudito a descrevê-las, sem jamais chegar o fim do trabalho. 

É a obra de Deus na liturgia de Sua Igreja, guiando, fazendo crescer, elevando o humilde e rebaixando o avarento. Mas não. Não é o espaço sagrado que Deus fez crescer como árvore frondosa, dotado de milhares de pequenos símbolos e sinais, que nos foi proposto no curso. Foi, sim, ao contrário, uma construção humana, uma tentativa de afirmação de um arrogante racionalismo que se julga capaz de fazer em uma prancheta, com três blocos de pedra, algo melhor que aquilo que o Espírito desenvolveu ao longo de dois mil anos. A este propósito, a sabedoria popular – vox populi, vox Dei – fez-nos ver, em curioso incidente, o quanto se afasta o que nos foi proposto do sensus fidei do fiel comum. Fomos visitar uma igreja, em que o arquiteto procurou fazer um meio termo entre a aridez absoluta proposta no curso e o que nos foi dado pela tradição. Erigiu ele um presbitério elevado, com uma imagem da Virgem, o sacrário, o altar, uma credência, um ambão e três cadeiras, sendo o fundo composto por um gigantesco biombo. Tudo foi feito da mesma madeira lisa, como um cômodo planejado que a loja vende em conjunto. 

Quando lá chegamos, vimos todos que os fiéis haviam colocado, à revelia do arquiteto e de seu projeto, uma samambaia de cada lado do biombo, tendo anjos de gesso colorido com lâmpadas a fazer-lhes companhia. Evidentemente, aquele pequeno toque de vida, em vã tentativa de esquentar e humanizar o glacial espaço uniforme, mais assemelhado a um quarto de hotel que a um presbitério, foi condenado por fugir à completa aridez que ao longo do curso nos foi apresentada como desejável.
No mesmo dia, sendo projetadas fotografias de igrejas ditas modelares, o mesmo fenômeno foi observado e lamentado: aqui uma samambaia, lá flores, acolá ramagens. Comentei então com um colega que quando se faz um projeto e todos os usuários fazem-lhe a mesma modificação, faz-se mister considerar se não houve um erro nele. E houve, meu bom pastor, e houve. O que o sensus fidei dos fiéis mostrou, nas fotografias e na prática, é que é abominável à fé católica, é contrária à tradição e à espiritualidade católica esta tentativa de construção do paradoxo supremo: um altar calvinista, um nu, cru e vazio bloco de pedra fria sem adorno, em uma igreja sem imagens, com janelas sem vitrais – que em uma igreja em reforma que visitamos, aliás, eram exatamente iguais às portas de vidro temperado que encontramos em quase todas as agências bancárias! Não se pode lembrar da Virgem, mas se pode lembrar do Bradesco...

Foi mesmo dita coisa cruel, que muito me assombrou; foi-nos dito que seria uma afronta aos pobres ter uma Igreja decorada, visto viverem eles na simplicidade. Ora, palavras semelhantes já disse o Iscariotes, lamentando o perfume que ungia o Senhor. Mais ainda, na nossa boa e católica cultura brasileira, o valor imenso que é dado pelos mais pobres a decoração dificilmente encontraria igual. “Pobre gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual”, já dizia Joãozinho Trinta. E é verdade. No Brasil, aqueles que levantam a própria casa tijolo por tijolo, levando anos ou décadas para passar da fundação ao acabamento, são os primeiros a comprar azulejos azul-turquesa com listras douradas assim que lhes sobre um dinheirinho para o adorno, mais prioritário que o transporte próprio ou mesmo que a educação dos filhos! É a busca do pulcro, firmemente marcada na alma brasileira. Disto terá sem dúvida tido exemplo muitíssimas vezes Vossa Excelência Reverendíssima, que em visitas pastorais terá sido recebido com “o prato bonito” que a dona de casa simples comprou com carinho para ocasiões especiais, terá visto o esmero e o capricho com que aqueles que por vezes mal têm o que comer plantam flores na porta do barraco, terá visto a pequena lâmpada incandescente que acrescenta suados reais à conta de luz, mas não deixa de brilhar junto à imagem do Crucificado.

Meu pai, meu bom pastor, meu Bispo, é literalmente com lágrimas nos olhos que escrevo estas linhas. Meu pai, meu bom pastor, meu Bispo, Sucessor dos Apóstolos, que horror, que devastação, que atentado calunioso à alma do povo brasileiro é afirmar que não lhe seria agradável adornar com carinho a Casa do Pai!

4. De volta ao tema, quanto à organização do espaço, pergunto: donde pode vir a triste idéia de enfileirar ambão, altar e cadeira, eliminando todo o resto e colocando os fiéis como um par de parênteses a retirar da coerência e do contexto vital a união de céus e terra que ocorre realmente no Santo Sacrifício do altar?! De onde mais, que da lastimável recusa da Comunhão dos Santos que vemos nas comunidades eclesiais protestantes, fechadas em torno delas mesmas, sozinhas, isoladas por uma eclesiologia falha em uma experiência em que a comunhão não significa mais que a mera companhia física de outros seres humanos?

A Igreja que caminha ao encontro do Senhor tem consigo – ao seu lado, atrás, à frente – toda a Comunhão dos Santos. Como disse Chesterton, “a Igreja é uma democracia em que os mortos têm voto”. Mortos de corpo e vivos de alma, padecendo no Purgatório ou triunfantes no Céu, auxiliados por nossas orações e auxiliando-nos com as suas. Não faz sentido algum deixarmos de lado a caminhada ao encontro do Cristo para darmos as costas para tudo o que não é a presença física dos outros. Não faz sentido algum que, ao invés de elevarmos os olhos ao altar, tenhamos que abaixá-los para o altar... ou estaremos observando o penteado e o modelo de óculos de quem a Providência quis colocar à nossa frente, no outro parêntese que cerca o altar como a não deixar que ele se comunique com o exterior. Não podemos olhar para uma imagem da Virgem Puríssima, é-nos proibido contemplar devotamente a imagem do santo padroeiro daquela igreja, mas é de buscar que vejamos o penteado de Dona Cacilda, o bigode de Seu Fagundes, que (como foi dito no Encontro ser desejável) “olhemos nos olhos um do outro”? Que outro sentido isto poderia ter, senão a negação mais pertinaz da Comunhão dos Santos e sua substituição por uma teologia protestante em que faz as vezes de comunhão a presença física?!

Lamentou o Sumo Pontífice que, mesmo em meios católicos, devido a uma falsa compreensão do sentido da orientação da oração litúrgica, por vezes “a comunidade tornou-se um círculo fechado em si mesmo”, deixando de colocar-se como “uma procissão rumo ao Senhor”. Esta falsa compreensão tem sua origem na negação do Sacrifício feita no protestantismo, e sua expressão mais extremada na colocação da assembléia que nos foi proposta no curso como a mais desejável. Ao cercar o altar com os fiéis, retirando-se dele a Cruz e tratando-o como mesa apenas, perde-se a crucial dimensão sacrifical da Eucaristia. Ora, a Eucaristia é sim refeição, mas por ser Sacrifício; não houvesse Sacrifício, não haveria Vítima imolada a consumir. É uma refeição sacrifical, não uma ação de graças por termos pãezinhos e vinho.

Negar aos fiéis a orientação comum em direção ao Senhor é negar subliminarmente que há Algo além, é negar-lhes a consciência do Outro, é fazer com que se fechem em um círculo em torno de suas crassas necessidades materiais, sem movimento possível além daquele ponto. Em uma igreja construída da forma que o Espírito Santo desenvolveu na Igreja ao longo destes dois milênios, os fiéis estamos em procissão para o Oriente, estamos caminhando como Igreja rumo a nosso Salvador. Em um círculo fechado, não há caminhada possível, não há a presença do Outro, não há nada que signifique o Sacrifício real. Há uma mesa,
prato, copo, pão, vinho. É quase uma mesa de bar. Quando fecha o bar, empurramos as cadeiras para trás e viramos as costas para a mesa: é o único movimento possível.

5. Foi-nos dada durante o curso uma revista sobre liturgia, que ofereceu um curioso e à primeira vista incompreensível contraste com o que era nele pregado. Enquanto nos era vendido o peixe de um árido deserto com três pedrinhas nuas fazendo as vezes de ambão, altar e cadeira, cercadas por um par de parênteses de pessoas olhando nos olhos umas das outras enquanto o Senhor se queda sozinho, a revista trazia artigos sobre “celebrações” em que todo tipo de traquitana era levado ao altar, em que eram festejadas “divindades” indígenas, estados de espírito, metas políticas, que sei lá eu. 

O contraste, contudo, era ilusório. Não há incoerência entre a feira livre pregada na revista e o cimento vazio pregado no Encontro, porquanto é sobre o cimento que se monta a feira. Ao esvaziar o espaço litúrgico de tudo o que dele faz um espaço definida e irredutivelmente Católico – um espaço sagrado e voltado para o Outro, o Mistério, o Verbo Encarnado, simultaneamente dentro e fora do tempo ¬– abre-se a possibilidade de substituir o que é católico por qualquer coisa, de se tentar preencher com traquitanas e preocupações comezinhas a busca do homem pelo Infinito, a busca do cristão por santificação. 

Alguns poucos, porém, uma elite arrogante que despreza conceitos “ultrapassados” como a Verdade, reúnem-se em torno das três pedrinhas, em Bose ou em um círculo infernal. Não lhes interessa se o Cristo é o Filho de Deus, não lhes interessa se Ele está presente como símbolo ou realmente no Santíssimo Sacramento do altar. Interessa, sim, que eles todos “dão testemunho” de uma comunhão na verdade inexistente entre anglicanos, luteranos e “católicos” unidos pelo indiferentismo e pela arrogância de definirem eles mesmos o que é liturgia, jogando no lixo dois mil anos de obra do Espírito e “construindo” na prancheta um espaço supostamente ideal em que a Sã Doutrina é simplesmente irrelevante.

São os Puros da Gnose, do Catarismo, de todos os movimentos que sempre buscaram solapar esta magnífica nota da verdadeira Igreja: a sua catolicidade, a inclusão de todos no mesmo espaço, no mesmíssimo culto perfeito por sobrenatural, caminhando rumo ao Cristo que vem. Enquanto isso, a plebe ignara faz das três pedrinhas estante para apoiar suas mesquinharias, tela para projetar seus desejos, espelho para celebrar a barriga cheia ou chorar a barriga vazia. De um lado os puros, escolhidos (por quem?), que sabem, e assim se contentam com a liturgia zen em um espaço zen. Do outro, os mal-lavados, em bando, dançando e ululando, celebrando sua própria selvageria sob o olhar complacente dos Escolhidos. 

É uma tentação clássica, que sempre assombrou a Igreja e que esta sempre soube combater, pelas mãos, pela boca e pela pena de Bispos santos e fortes como este a quem a Deus aprouve confiar a Diocese da Campanha. Desta feita, ela nos vem da Europa que, de terra da Fé, tornou-se quase território de missão. Da Europa que está a envelhecer, sem que seus habitantes se animem a gerar filhos. Da Europa em que as igrejas estão vazias e em que não há vocações. Da Europa em que os homens de menos de quarenta anos de idade foram educados a sempre sentar no vaso sanitário... Naquelas terras cuja alma hoje está gélida, naquelas terras em que o contato humano se faz raro, operou-se o anti-milagre da substituição da esperança militante da Visão Beatífica pelo “olhar no olho” de quem está na mesma celebração. É só assim, forçados pela posição física e pela localização espacial, que eles se olham. Eles não têm o calor humano, o contato, o tapinha carinhoso e paternal do Bispo na careca do fiel.

São estes homens frios que querem nos arrancar o calor das igrejas e fazê-las espaços vazios à sua moda, para servirem de espaço à celebração-de-si nua e árida que fazem os “puros” ou à celebração-de-si suada, ruidosa e cheia de traquitanas dos selvagens que os “puros” olham complacentemente, confiantes na inexistência da Verdade, do Outro, do próprio Amor que ignoram. Venho, assim, como portador das más notícias, como o mensageiro que entra a avisar da infiltração do Inimigo, como o filho apavorado a gritar “meu pai, socorro, uma cobra!” Arrojado aos pés de Vossa Excelência Reverendíssima eu me coloco como filho, implorando-lhe que não permita que a isto se resuma a formação dos fiéis que Deus confiou ao seu sábio pastoreio. Mais ainda temo por ter podido perceber ser real o temor de que seja esta visão, tão contrária à Fé que Deus nos deu, ao patrimônio litúrgico da Igreja Particular da Campanha e à própria mentalidade do povo brasileiro e especialmente mineiro, impregnada de tradição católica, de amor ao pulcro, de busca do sublime, que oriente os Reverendíssimos Padres encarregados da Comissão diocesana de Espaço litúrgico e Arte sacra, fazendo com que vejam esta como antitética àquele.

Temo sinceramente que esta nova iconoclastia venha arrasar igrejas, não mais quebrando as imagens, mas relegando-as a saletas nos fundos ou ao museu. Temo como filho e temo como fiel que a ironia suprema de um altar calvinista tome o lugar do riquíssimo “espaço celebrativo” que desenvolveu o Santo Espírito na Igreja, fazendo das igrejas e capelas áridos desertos em que o culto a Deus se torna difícil e a devoção aos Santos quase impossível.

Temo, Excelência Reverendíssima, que elementos alheios à Fé venham progressivamente infiltrar-se no meio dos fiéis, ocupando com engodos e promessas vãs o espaço vazio deixado pela devastação do espaço litúrgico e sua substituição por algo a meio caminho entre um templo japonês e um panorama lunar.

Peço, senhor meu pai, sua carinhosa intervenção.

No Carmo de Minas,
Na festa de Finados,
Pedindo sempre as orações de Vossa Excelência Reverendíssima,
Seu filho e criado,

Carlos Ramalhete,
Pecador.


Um comentário:

  1. Impressionante! O pior é que vemos a promoção dessa dessacralização das Igrejas em todo canto do país. Lamentável que o bispo não tenha respondido a carta. É de bispos assim que nós brasileiros estamos servidos. Em pensar que milhares de católicos estão sendo doutrinados com esse pensamento destrutivo.

    Como disse Santa Catarina de Siena: "Por causa dos maus pastores, maus são os súditos."

    ResponderExcluir

Faça um blogueiro feliz: comente, critique, opine, sugira.